domingo, 2 de junho de 2019

HC Entrevista: Devotos, o Alto José do Pinho e o Agora Tá Valendo

Devotos das antigas: Tirada do Livro "Devotos: 20 anos", do Hugo Montarroyos (editora CEPE)
No final deste mês de junho, este humilde bloguinho completa 10 anos de história. Aproveitando o mês festivo, vamos começar a soltar algumas entrevistas com artistas que curtimos e acompanhamos ao longo de nossa história. Acreditamos que seria legal tentar colocar algumas entrevistas por aqui, mas não sabemos qual será a temporalidade delas.

A primeira que irá sair é com trio punk pernambucano Devotos. Eu tentei emplacar na vice entrevistas com a banda duas vezes nos últimos anos. A primeira foi em 2017, falando sobre os 20 anos de lançamento do Agora Tá Valendo, primeiro disco da banda, lançado pela PLUG/BMG em 1997 (Pra Download aqui). A segunda tentativa foi no final de 2018, falando sobre os 30 anos da banda e o lançamento do O Fim que nunca acaba, sétimo álbum de inéditas da banda (Pra download aqui). Um disco urgente, com sonoridade diferente do punk tradicional do trio e que desvenda o Brasil periférico atual como poucos. Mas a gente fala mais dele na próxima parte do papo. Eu pensei em soltar as duas juntas, mas me lembrei do grande pensador Fafá Zanatto e sua tag favorita: Too long, dont read (muito longo, não li).

Sendo assim, iremos começar pelo primeiro papo, que foi mais rápido e que põe em evidência um dos trabalhos mais legais do punk pernambucano, nordestino e porque não nacional. A Devotos (na época do Ódio) acabou se misturando com o Movimento Mangue ascendeu num momento em que Recife era pura musicalidade, atraindo interesse de pessoas do mundo todo. Foi assim que o trio do Alto José do Pinho conseguiu lançar seu primeiro álbum e direto por uma major (A PLUG da BMG).

Esse papo não saiu na época porque tanto eu, quanto o editor do site onde ele ira sair, achávamos importante falar não apenas com os integrantes da banda, mas com pessoas envolvidas no processo. Eu até tenho contato com Paulo André, produtor da banda na época e consegui o contato do Lúcio Maia (que produziu o álbum), mas com o Maurício Valadares o papo era meio engessado, apenas por mail e pelo visto estava "sem tempo irmão". E ele era peça fundamental para entender ainda mais o álbum, já que parte da polêmica era que sonoramente o disco não parecia com a Devotos ao vivo, como bem disse Hugo Montarroyos no livro "Devotos: 20 anos". Eu poderia ter insistido um pouco mais, mas a questão é que demorou muito e a matéria esfriou.

A questão é que ambos os papos tem falas muito bacanas do Cello, Neilton e do Cannibal.  E seria bobeira deixar isso morrer no meu bloco de notas. Fora que trata-se de um dos discos mais importantes da minha vida (Tá até na lista que fiz pro Flogase). Passei parte da minha adolescência morando bem perto do Alto José do Pinho e como todo jovem, era imprudente o bastante para andar de bicicleta subindo e descendo as ladeiras por toda extensão da Avenida Norte. Bom, segue o papo.


 


Como é ter razão há 20 anos? É frustrante ver que alguns dos problemas tratados no Agora tá valendo ainda existem?

Cannibal: eu acho que o que aconteceu há 20 anos e o que acontece agora é reflexo da própria sociedade. A gente está vivendo num período onde todo mundo tá reivindicando uma nova política, mas eu acho também que as pessoas tem que se cobrar. Não adianta reivindicar nova política, é também você saber o que você quer fazer, saber votar, saber correr atrás e reivindicar as suas coisas. É que às vezes as pessoas trocam seus votos por coisas imediatistas, um emprego, alguma coisa e não pensa no social.

Isso é uma coisa meio cultural do Brasil. Isso sempre aconteceu e vai continuar acontecendo. Então qualquer coisa que você fale ou faça nos anos 80, vai se refletir muito no agora, por que tudo que aconteceu, continua acontecendo. A gente tenta mudar as coisas, mas esquece de mudar nós mesmo e o nosso jeito de viver. Eu acho que a gente pensa muito na gente individualmente, no momento em que a gente começar a pensar socialmente em tudo, eu acho que a coisa começa a melhorar.

Eu acho o “Agora Ta Valendo” um disco sobre o Alto José do Pinho, mais até do que sobre periferia, Recife ou vocês três. Queria que vocês falassem como é retratar um espaço tão pessoal de vocês e ver esse trabalho ser tão bem recebido.

Cannibal: A ideia daquele disco é muito Alto José do Pinho porque, até os 16, 17 anos, que foi quando a gente começou a fazer música, a nossa vida era o Alto José do Pinho, eu não conhecia nada. Eu particularmente não saia do Alto José do Pinho pra quase nada, saia só pra jogar pelada (futebol amador). A minha vida social era no Alto José do Pinho e eu escrevi o que eu vivia e via, eu não escrevia nada sobre o que eu via na TV ou no jornal, não tinha como escrever sobre isso porque não era meu.
Era um cara passando na rua, sentado na calçada sem nenhum centavo tomando cachaça e eu escrevendo a letra naquele momento. E é por isso que a identificação é tão forte com a comunidade. Por causa da nossa vivência dentro da comunidade. A gente pensava muito dentro do Alto José do Pinho. O mundo estava acontecendo, a gente estava no mundo, mas a nossa preocupação maior era com a barreira que estava caindo lá no Alto, era com a falta de segurança no Alto e isso refletia em outras comunidades. E ai que eu entro na história de ter dado certo, principalmente pra quem é de periferia. Porque você falar do Alto era meio que falar dos problemas que aconteciam em todas as periferias. Por isso que aquele disco o “Agora Tá Valendo” é muito Alto José do Pinho. A gente só começou a sair do Alto depois que a Devotos começou a acontecer e ai a gente teve outra visão de mundo, por assim dizer. Mas esse disco é a cara do Alto.

O que eu posso dizer que mudou de lá pra cá, falando 20 anos depois. Eu acho que o que mudou de lá pra cá é ver a galera com uma autoestima mais forte, de não ter vergonha de ser morador da comunidade. E que pode mudar o seu quadro social com a cultura, com seu trabalho. E isso a gente tem na vivência no Alto José do Pinho, porque depois da gente surgiram vários outras manifestações culturais como o Afoxé, o “Amigos do Alto José do Pinho”, e várias outras pessoas que fizeram e fazem até hoje. Então, a gente viu que conseguiu dar um empurrão, se nós conseguimos mostrar o Alto para o mundo e sair dele com isso, vocês também conseguem. Essa afirmação a gente vê hoje na comunidade. Os problemas continuam acontecendo, a falta de segurança, saneamento, etc. Mas aquela coisa de você dizer: Eu moro no Alto José do Pinho, eu sou morador do Alto, isso a gente conseguiu mudar. Não só como banda, mas como um coletivo de pessoas que queriam mudar positivamente seu lugar. Hoje as pessoas falam que moram aqui, que conhecem o Adilson do Matalanamão, o Zé Brown do Faces do Subúrbio. A referência agora é a música e a cultura. Antigamente antes das bandas, as referências eram o assaltante de banco, o criminoso que descia pra assaltar na Avenida Norte, era o cara que saia nos jornais policiais. Então hoje isso mudou muito.

Cello: Eu acho que o disco sintetiza a autoafirmação do lugar onde você vive e como você vive. Eu acho que o disco resume bem isso, essa identidade com uma estima, ela leva muito essa mensagem de estima.

Vocês pesaram o risco de se expor e ter essa autoafirmação do Alto, da periferia, de seus ideais? Já que o disco saiu por um selo grande, pra todo o Brasil, apresentando vocês.

Cello: Eu acho que a gente nunca pensou nisso não. Com relação à autoafirmação de ser músico, essa a gente já tinha sim. Cada um na sua vertente de rock, mas todos já estavam nessa querer fazer música. Você já vinha desafiando tanta gente na escola, comunidade, casa, você já vem desafiando tanta coisa que quando você acha dois ou três caras pra se juntar com ideias parecidas e tirar um som, você se joga.

Neilton: Tem outra história nisso tudo que é que na época quando a gente começou a tocar, nós nunca quisemos ser exemplo e nem servir de direcionamento pra ninguém. A gente só faz o que a gente gosta. Mas isso reverberou no Alto de um jeito que a gente não tinha noção, porque as pessoas começaram a perguntar como aprender a tocar, onde comprava instrumento, até então isso não tinha força por lá. E isso foi muito importante pra gente entender o que estava acontecendo. E nós sempre nos misturávamos muito, então o pessoal viu uma banda punk tocando junto com um afoxé, com o maracatu, caboclinho e sem querer, passando isso para uma nova geração, sabe? E isso foi muito importante e nos da muito orgulho.

Como foi o contato pra chegar na BMG e lançar o disco, contem ai.

Neilton: A Devotos é do movimento punk, né? E tem muita influencia daquela cena de São Paulo, do Inocentes, Olho Seco, Ratos, Garotos Podres, essa galera. E por consequência, teve influencia até nas letras. Depois de um tempo é que a gente começou a ver que não era só aquilo que fazia parte do ideal de trabalho do movimento punk e nem do futuro como a gente imaginava. A gente começou a perceber isso quando um amigo nosso, que sempre ia pros shows da gente na época, Carlos Freitas, fez uma observação bem positiva, ele falou que a gente poderia falar de qualquer coisa e não só falar que a bomba iria explodir. Que era o tema básico do que era dito pelo punk nos anos 80, por causa da bomba nuclear, e tinha mais a ser dito que isso.

E eu falo isso porque tem tudo a ver com a nossa contratação e o lançamento pela BMG, porque mais uma vez, comungamos sem querer com o que estava acontecendo nos anos 90. Por coincidência com o movimento mangue, o aparecimento de Paulo André como produtor criando o Abril Pro Rock, entre outras coisas que estavam rolando na cidade. E eu acho que a única banda punk a comungar com essa galera fomos nós, sem deixar de ser punk e sem mudar o que a gente falava, sem negar nossa origem ou nossas ideias. E tem muita gente que nessa época nos colocou no velho chavão de traidores do movimento, porque de certa forma a gente estava participando do circuito, do boom do movimento musical que colocou Recife muito em evidência.

O lance do contrato, a gente tinha recebido até outras propostas de outras gravadoras até grande e tal, mas terminamos assinando com o selo PLUG da BMG por causa de um cara foda, que era o Mauricio Valadares, que percebeu o quanto o que a gente falava era verdadeiro, sabe? E o Mauricio tem uma história massa no rock brasileiro porque ele viveu toda aquela cena rock dos anos 80 no Rio, ai era um cara que tinha propriedade pra dizer se valia a pena investir numa banda como a Devotos em uma gravadora grande. A principio fomos muito relutantes, por conta da própria filosofia do punk, por mais que a gente não seguisse nada, a gente ficou meio relutante. Mas a gente pensou primeiro na banda e em como levar o nosso som o mais longe possível e naquela época era através de uma grande gravadora.

O Mauricio veio pro Abril Pro Rock em 1996 e viu a gente ao vivo e chegou no Paulo e disse: eu quero essa banda. E Paulo fez a ponte pra gente assinar com a BMG e acabou sendo o produtor da Devotos na época, vendendo os nossos shows após o lançamento do disco. A gente já tinha contato com ele na época de Chico (Science), nós fomos a banda que abriu o primeiro show da turnê do Afrociberdelia em São Paulo em 1996, e isso ajudou porque estávamos num lugar onde tocavam a nata da música no Brasil que era o Tom Brasil. Eu lembro que os seguranças do espaço ficaram muito felizes porque os cara tinham banda punk e viram uma banda punk tocando na Tom Brasil. Tem várias histórias que nos levam ao contrato com a BMG.

Vocês tiveram que mudar alguma coisa no som de vocês pra gravar o álbum? Por que ele é bem diferente da demo anterior e de como soava ao vivo.

Neilton: Tiveram vários fatores para que isso acontecesse. Sonoramente a gente não gosta muito do disco. Assim que chegou a mostra da mala, a gente ouviu e não entendeu. E confesso a você que eu não entendo até hoje. Por que tem coisa que a gente gravou e não saiu por exemplo. E tem outra coisa que a gente ficou pensando depois, não digo que ficamos arrependidos, mas pensamos muito depois é se a gente escolheu a pessoa certa pra produzir o disco por exemplo. Porque era o primeiro disco produzido pelo Lúcio Maia, principalmente um disco pesado. Por mais que a gente saiba que ele é muito bom na história de timbrar as coisas, pode ser que ele tenha sido podado. A gente não sabe, ficamos meio de inocente no final das gravações, porque quando Paulo chegou com a referência do disco na master pra gente ouvir, a gente ficou achando que ainda era o cru e ainda faltaria fazer alguma coisa e falamos pro Paulo. Mas e ai, quando a gente vai finalizar esse disco? E o que a gente gravou, tá aonde? E ele disse: não esse é o disco já.

E a gente nunca negou que a gente não gosta do som do disco, a gente sabe a importância que ele tem nas letras e nas músicas, mas sonoramente a gente não gosta do disco. Tanto que os discos depois foram bem mais pesados e rápidos, por exemplo. A questão da velocidade das músicas porque na época a galera queira que as músicas soassem não mais lentas, mas que fossem mais longas ao vivo e ai a gente teve que rearranjar algumas faixas, deixar elas mais longas pra gravação, diferente do que a gente fazia nos shows na época. Mas o som como saiu, a gente não tem muita culpa não (RISOS).

Como é manter a mesma formação numa banda há mais de 20 anos, se mantendo relevante?

Cello: Eu acho que a gente gosta de músicas bem diferentes e existe um respeito de todos. E essa mistureba faz bem pra gente, deixa o som interessante. Eu continuo ouvindo as mesmas coisas eu ouvia na época desse disco. O Neilton gosta das coisas estranhas dele e o Cannibal talvez seja quem mais se expandiu nos estilos por assim dizer.

Neilton: Eu acho que a gente nunca pensou muito no tempo não, só foi fazendo mesmo.



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